IA x humanos: Uma batalha pela alma da música
E o que um navio grego de 2.500 anos atrás tem a ver com a sua retrospectiva de fim de ano do Spotify
Nessa quarta e bela edição do Ininterrupta, quero falar sobre a indústria da música e sobre como a IA está causando um belo de um rebuliço nesse mercado. Já faz um tempo que penso em escrever sobre o assunto, que não é nem de longe a única discussão sobre arte e tecnologia que temos atualmente, mas é uma das mais interessantes.
Vamos começar com uma historinha: Bora pra março de 2006, na Suécia. Jonas Altberg, conhecido como Basshunter, volta pra casa depois de tocar num clube em Halmstad. Ele e os amigos estão jogando Counter-Strike enquanto conversam no mIRC num canal de chat chamado #basshunter.se. Ele nota uma usuária com poderes de administrador: a Anna, e assume que a diva é um bot, afinal, quem mais teria esse nível de acesso né?
Semanas depois, Altberg descobre que Anna era a namorada de um fã que ajudou a criar o canal. A confusão vira a música “Boten Anna”, que explodiu na Escandinávia e virou um dos maiores hits de eurodance da década, somando ainda hoje mais de 100 milhões de streamings no Spotify. A graça estava na premissa absurda: confundir um humano com uma máquina era burrice demais.
Corta para 19 anos depois, quando sai uma pesquisa da Deezer com a Ipsos trazendo dados como 97% das pessoas não conseguindo diferenciar uma música feita por IA de uma feita por um humano. Hoje, são mais de 50 mil faixas geradas por IA chegando à plataforma todos os dias, representando 34% de todos os uploads.
De repente, a piada do Basshunter inverteu e não é mais tão engraçada assim. Esses números me pegaram demais.
Temos robôs no topo dos charts
Enquanto isso, a música “Walk My Walk” do Breaking Rust, um cantor de IA, também está sendo largamente debatida essas semanas por ter chegado ao topo do Country Digital Song Sales da Billboard. Tudo bem que esse chart mede downloads, e vamo lá, em 2025, quase ninguém mais baixa música. Estamos falando de algo em torno de 3 mil downloads semanais para chegar nessa posição, que é bem menos representativa do que um Hot 100, que mede streams.
Mas também não dá pra ignorar que essa música bateu 3 milhões de plays no Spotify em menos de um mês de lançamento. “Livin’ on Borrowed Time”, outra faixa do AItista, chegou ao top 5 viral 50 dos EUA, passando de 4 milhões de streams. A página oficial do Breaking Rust no TikTok tem cerca de 200 mil seguidores, e a faixa já foi usada em mais de 150 mil vídeos. Isso tudo sem que ninguém saiba quem é o criador por trás da coisa.
Se fosse só o Breaking Rust até que tava bom. Pelo menos é só uma música country meio genérica que não faz mal a ninguém. Mas na Holanda, uma música de IA anti-imigrante chamada “We Say No, No, No to an Asylum Center” chegou ao topo do chart viral global do Spotify. O criador JW Broken Veteran defendeu que vê a IA como “apenas mais uma ferramenta de expressão, particularmente valiosa para pessoas que têm algo a dizer mas não têm treinamento musical tradicional”.
A faixa já foi removida, mas sua existência é um tapão bem no meio da na nossa cara. A IA virou ferramenta de propaganda em massa e qualquer pessoa pode criar uma música com uma mensagem política pra soltar por aí. Quer mais exemplos? Temos. Uma banda de IA chamada Velvet Sundown acumulou mais de 1 milhão de streams no Spotify e ninguém desconfiou de nada até que um dos responsáveis revelou que era um “art hoax“. Holding Absence, uma banda de verdade, viveu um pequeno pesadelo na pele porque um projeto de IA (Bleeding Verse) citou que usava eles como influência. Ou seja, a IA foi treinada e aprendeu com eles, e depois ultrapassou o número de streams da banda original.
A resistência se chama Rosalía
Daí vem a Rosalía com dois pés na porta. Seu novo álbum, Lux, é quase uma declaração de princípios artísticos para tempos malucos. Gravado com a London Symphony Orchestra com a regência de Daníel Bjarnason, e cantado em 13 idiomas, o disco foi criado sem qualquer uso de inteligência artificial. Rosalía faz questão de enfatizar isso em cada entrevista que está dando.
Ela passou dois anos aprendendo a escrever e cantar em outras línguas. Começou com Google Translate para ter uma noção geral, depois trabalhou com tradutores profissionais para refinar as letras, e finalmente contratou professores de fonética para garantir que a pronúncia fosse autêntica. Isso tudo sem atalhos algorítmicos nem vozes sintéticas.
O resultado foi de 97 pontos no Metacritic, sendo o álbum mais bem avaliado de 2025 e o quarto melhor da história do site. No dia de estreia, Lux quebrou o recorde de streams para uma artista feminina em espanhol: foram 42,1 milhões de reproduções. A crítica do The New Feminist capturou bem: “A escolha de usar a orquestra e fazer um álbum que só pode ser criado com a colaboração de pessoas, ao invés de máquinas, é uma declaração bastante importante nos dias de hoje.”
A orquestra é feita de centenas de músicos tocando juntos em tempo real, respondendo uns aos outros, errando e acertando juntos. Cada gravação é um momento irrepetível. A IA pode até ser boa em replicar som, mas jamais o ritual.
Outras mobilizações
Em abril de 2024, mais de 200 artistas como Billie Eilish, Nicki Minaj, Katy Perry e Stevie Wonder assinaram uma carta aberta exigindo limites ao uso predatório da IA e proteção dos direitos autorais. A carta, organizada pela Artist Rights Alliance diz: “Devemos nos proteger contra o uso predatório da IA para roubar vozes e semelhanças de artistas profissionais, violar direitos dos criadores e destruir o ecossistema musical.”
Em outro movimento muito similar, mais de 400 escritores e músicos, incluindo Paul McCartney, Elton John, Ed Sheeran, Dua Lipa, Sting e Kate Bush, assinaram uma carta ao jornal The Times condenando as propostas do governo britânico de flexibilizar direitos autorais para treinar IAs. A carta caracterizou a proposta como uma “doação em massa” para o Vale do Silício às custas dos criadores britânicos.
E também teve o silêncio quando mais de 1.000 músicos lançaram o álbum “Is this what we want?” composto inteiramente de gravações de estúdios e espaços de performance vazios. Sem nenhuma voz ou instrumento, apenas o ruído de fundo de lugares onde a música deveria estar. Os títulos das faixas, lidos em sequência, formam a mensagem: “The British government must not legalise music theft to benefit AI companies.” Trata-se de um protesto conceitual com a recusa coletiva de criar música para mostrar o que acontece quando ela é roubada. O álbum chegou ao top 40 do Reino Unido, e a versão em vinil será lançada agora em dezembro.
O organizador desse projeto é simplesmente o Ed Newton-Rex, e esse divo merece um parágrafo especial. Ele é ex VP de áudio da Stability AI, uma das maiores empresas de IA generativa do mundo, a mesma que criou o modelo de imagem Stable Diffusion. Ele estava lá dentro e via como tudo funcionava, acompanhando o treinamento dos modelos, até que um dia pediu demissão por questões éticas. Newton-Rex discordava da posição da empresa de que treinar IAs em trabalhos protegidos por copyright sem permissão era “uso justo”. Hoje, o ex-executivo mudou de time e lidera uma ONG chamada Fairly Trained que certifica empresas de IA que usam apenas dados licenciados ou de domínio público. Eu tranquilamente assistiria um documentário sobre esse bafafá todo (por favor alguém faz, alou plataformas de streaming).
Resumindo o apocalipse criativo
Um estudo encomendado pela CISAC (a confederação internacional de sociedades de autores e compositores) mapeou cenários para 2028. Vamos a eles:
1) O mercado de IA generativa em música pode passar a valer €16 bilhões anuais até 2028.
2) A receita dos criadores humanos pode cair 24% em comparação com um cenário sem IA
3) No streaming, a fatia dos criadores pode cair de 8,2% para 6,4% do mercado.
4) Os provedores de IA podem dobrar de tamanho entre 2023 até 2028.
5) Dois em cada três artistas e produtores já temem que a IA represente uma ameaça às suas carreiras.
Há uma tensão no ar, isso é claro. Mas pra continuar a pensar na situação atual em toda sua complexidade, quero voltar coisa pouca na história, só básicos dois milênios e meio, pra começar do começo: lá nos mitos gregos. Sim, agora é o momento em que eu dou um corte seco para falar de um navio. Essa é uma das minhas histórias favoritas da vida*.
O navio que nunca parou de navegar
Bora lá, imagina comigo: Existia Teseu. O boy tinha um navio onde ele viveu muitas aventuras, inclusive uma saga de matar o Minotauro. De volta pra Grécia, os atenienses decidem preservar o navio como memória e celebração do feito, além de seguir usando ele pra outras batalhas. Acontece que o tempo passa, e aos poucos o navio tem suas peças trocadas, até que um dia, notamos que nenhuma peça dele é a original.
A pergunta 1, feita por Plutarco, é a seguinte: se todas as peças do navio foram trocadas, o navio que está no porto hoje ainda é o Navio de Teseu?
Mas calma que fica pior. Séculos depois, Thomas Hobbes vem com outra pedrada. Imagine agora que um colecionador randômico deu de guardar todas as peças originais e podres daquele navio antigo. Daí ele vai lá um belo dia e constrói um navio com elas. Agora temos duas embarcações: uma renovada e uma reconstruída.
A pergunta 2 é: Qual deles é o verdadeiro Navio de Teseu?
Matéria, forma ou propósito: o que define a identidade?
E aí a coisa vai que vai. Se a identidade é dada pela matéria, então o navio do porto não pode ser o navio de Teseu. Mas há uma outra definição de identidade: se o navio do porto nunca deixou de ser o Navio de Teseu, ainda que suas partes sejam modificadas gradualmente, ele segue sendo pela continuidade. Pensando assim, removido de matéria e nutrido de propósito, o que importa é que ele carrega uma história ininterrupta.
Ok. Adicionamos à conta Aristóteles, que propõe uma estrutura útil para resolver esse enigma. Para o Ari (sejamos íntimos) tudo no universo pode ser explicado através de quatro causas: a material (de que algo é feito), a formal (o design ou forma do objeto), a eficiente (que agente ou força gerou a mudança ou criou o objeto) e a final (o propósito). Logo, o navio do porto é o verdadeiro porque ele mantém a causa formal, a eficiente e a final, enquanto o outro tem só a material.
Chega então John Locke e, para ele, a identidade não está no corpo, mas sim na continuidade da consciência. Se você lembra, você é. Fim de papo.
O cinema e a literatura já replicaram esse mito muitas vezes
Storytellers e autores já se esbanjaram de contar variantes desse paradoxo. Uma das mais recentes que eu assisti foi o filme Mickey 17, do Bong Joon-ho. Nele, o personagem Mickey é um descartável, uma pessoa que aceita fazer trabalhos perigosos numa colônia espacial porque, toda vez que morre, é impresso de novo com suas memórias intactas. O drama começa quando um Mickey é dado como morto e um novo é criado (Mickey 18), mas o original volta vivo. Existem dois Mickeys idênticos, com as mesmas memórias, mas experiências diferentes a partir dali. Qual é o verdadeiro?
Já Frankenstein, o clássico de Mary Shelley de 1818 e recentemente adaptado por Guillermo del Toro, é a versão gótica e meio reversa do paradoxo: o cientista Victor Frankenstein cria um ser vivo costurando pedaços de cadáveres. Ele usa um braço daqui, uma perna dali, órgãos de pessoas diferentes, e dá vida a um ser através de eletricidade. A criatura tem partes de várias pessoas mortas, mas nunca foi nenhuma delas. É algo novo feito do velho, um ser sem passado próprio, que conta apenas com os restos materiais dos outros. O monstro de Frankenstein é como se fosse um barco construído de muitas partes originais de outras pessoas. Ok, paradoxo contado, podemos voltar à tour da indústria musical.
Trocando as peças do navio da música
A música já vem trocando suas tábuas há décadas. No início, fomos da acústica para a amplificação. Nos anos 80, adicionamos bateria eletrônica. Nos 2000, o autotune. Assim a coisa foi indo. Cada nova tecnologia causou pânico e depois foi absorvida.
Quando o sintetizador surgiu, os músicos clássicos disseram que era o fim da música de verdade. Quando o sampler apareceu, artistas processaram uns aos outros. Quando o autotune virou norma, os mais puristas declararam a morte do talento vocal. Até aí, tudo bem.
O fato é que a gente até que aceita bem a mudança na causa material (do instrumento para o computador), e na causa formal (estilos sintéticos). O navio da música continuou navegando porque manteve sua causa final intacta: emocionar e entreter. Mas mais do que isso, aceitamos porque ainda havia um capitão humano no leme.
O ponto de ruptura: a causa eficiente
A IA gera tanto desconforto porque propõe trocar uma peça fundamental da embarcação: a intenção humana. O autotune pode até corrigir a voz, mas a intenção por trás ainda é nossa. Quando a IA gera a melodia, a letra e a voz do zero, o navio deixa de ter um capitão e passa a navegar sozinho. A pergunta muda de “Isso é música?” para “Quem está cantando?”
O que estamos vivendo é diferente de todas as revoluções anteriores. O sintetizador ainda exigia alguém tocando. O sampler exigia curadoria humana. O autotune exigia uma voz para corrigir. A IA generativa só precisa de um prompt: “Faça uma música country sobre amor perdido.”
Um Frankenstein musical
Também tem isso de que a IA não está criando música do nada porque tudo que ela sabe vem da própria indústria. Estamos falando de machine learning pesado, de treino em trilhões de músicas humanas passadas. Segundo John Locke, identidade é memória, então as IAs são como grandes arquivos de memória coletiva. Porém, como em Frankenstein, elas agem como o Dr. Victor indo ao cemitério de dados, pegando pedaços de melodias mortas e as costurando para criar algo novo.
É exatamente o que aconteceu com a banda Holding Absence. A IA foi treinada na música deles, foi lá e aprendeu seus padrões e progressões de acordes. Depois, gerou algo novo que era similar, aquele clássico “copia mas não faz igual” - um monstro construído com os órgãos da banda original.
A questão legal fica muito complicada nesse cenário. As gravadoras processam plataformas de música de IA, o New York Times faz o mesmo com a OpenAI. Editoras musicais tocam o terror na Anthropic por usar letras sem permissão, mas a lei ainda não sabe como lidar com algo que não é uma cópia direta.
Quando a música perde o sentido
Estamos presenciando uma certa morte na aura da música, algo que Walter Benjamin falava e que eu achava um grande drama & exagero quando estudei na faculdade, mas hoje em dia entendo a base. Vivemos a transição final de uma arte humana para o que Jean Baudrillard definiu como Simulacro Puro.
Para entender a crise atual, precisamos olhar para a evolução do que quer dizer “verdade” na música. Antigamente, uma gravação era um documento de uma realidade (alguém tocou naquela sala, naquele momento, com aquele instrumento). A gravação servia como uma evidência de que algo aconteceu.
Depois, com o pop industrial e o autotune, entramos em uma hiper-realidade: a indústria buscou uma versão polida e melhorada do real, mas que ainda tinha um toque humano.
Agora, a IA nos joga para um cenário onde existe uma cópia sem que exista uma versão original. Quando uma música é gerada, temos a representação perfeita de uma emoção que nunca foi sentida. Benjamin dizia que a aura de uma obra reside no seu “aqui e agora” e na sua irrepetibilidade: A música de IA é o oposto, como uma aura negativa. Ela nunca teve um momento de criação, nem houve ritual, estúdio ou tensão. Ela existe apenas para o consumo. E quando algo se torna infinitamente abundante e gerado sem esforço, seu valor - tanto financeiro quanto emocional - tende a zero.
O que nos resta?
A música gerada por IA é só a conclusão lógica da nossa obsessão industrial por remover o erro humano. A IA está apenas terminando um serviço que começamos nos estúdios de mixagem.
O paradoxo de Teseu nos obriga agora a escolher o que valorizamos: Se a música é definida apenas pelo som (o navio que navega), a IA venceu; Se a música é definida pela conexão humana (a história do navio), então a IA é só um fantasma. Neste momento, temos que reaprender a valorizar a imperfeição, a falha e o erro. De uma forma muito irônica, eles se tornaram as únicas provas de vida que nos restam.
Voltando ao Breaking Rust: o artista pode lançar 50 álbuns no ano que vem se quiser. Ele não vai pedir aumento, não vai ter bloqueio criativo, nem vai se envolver em escândalos. A real é que ele é o sonho de qualquer empresário, ter alguém 100% controlável e sem nenhuma das inconveniências de ser humano.
Mas é aí que tá o negócio. A música depende do ícone e da performance. Talvez seja a hora da gente retornar àquele momento de ser impossível separar totalmente o artista da obra. A vulnerabilidade, os excessos, a mortalidade e a história de vida do músico são o contexto que dão o peso à melodia.
Bohemian Rhapsody é icônica por si só, mas se torna transcendente porque sabemos que Freddie Mercury morreu de HIV. Back to Black da Amy Winehouse dói mais porque ela não sobreviveu ao vício que descreve. Reputation é a volta da Taylor Swift à indústria que a apedrejou. A música é inseparável da vida de quem a faz.
Mais do que isso, ela é inseparável do momento histórico em que nasce.
Caetano Veloso e Gilberto Gil foram presos pela ditadura militar, acusados de desrespeitar o hino e a bandeira. Eles riveram as cabeças raspadas, ficaram dois meses em quartéis do Rio de Janeiro. Com o exílio forçado em Londres nasceu “London, London” e “Irene”, além do álbum “Transa”. Na mesma ditadura, Ney Matogrosso subia aos palcos com os Secos & Molhados maquiado, de peito nu, rebolando e cantando com voz aguda em pleno governo Médici. Sua androginia era política e o corpo era ma forma de protesto. Os censores, pouco atentos à poesia, deixaram passar versos de Vinícius de Moraes e Manuel Bandeira. A banda chegou a tirar o Roberto Carlos do topo das paradas.
Cinquenta anos depois, Bad Bunny faz algo similar. “DeBí TiRaR MáS fOtOs” é descrito como seu álbum “mais puertorriqueño”, um mergulho na salsa, nos gêneros afro-porto-riquenhos que a indústria musical tentou apagar por décadas. As letras denunciam a gentrificação do seu país, a privatização das praias, o êxodo forçado do povo. Em “Lo Que Le Pasó a Hawaii”, ele alerta: não quero que façam contigo o que fizeram com o Havaí. O “clipe” conta a história colonial de Porto Rico em um tipo de PowerPoint descrito por um historiador. Bad Bunny escolheu fazer um manifesto político com ritmos que seus avós dançavam, e botar aquelas duas cadeirinhas na capa foi algo que curou a América Latina de um jeito que só um bicho muito humano poderia fazer.
A música é inseparável da vida de quem a faz, e a vida é inseparável do tempo em que se vive.
Falando de performance, dia desses vi Marisa Monte tocar no Ibirapuera com uma orquestra. Foi um show de hits. Para além dos músicos tocando ali ao vivo, tinha um sentimento de catarse coletiva: eram músicas que embalaram a vida de todo mundo ali. A diva foi tão diva que no último ato saiu do palco deixando todo mundo cantando - o show se encerrou com o público.
Enfim, remover o humano é tirar o risco da equação, mas também é enfiar a conexão no ralo. Nenhuma IA consegue simular o contexto que faz com que a gente se importe com aquele som. A pesquisa da Deezer mostrou que 80% das pessoas querem transparência, e 52% acham que músicas de IA não deveriam nem aparecer nas mesmas playlists que músicas humanas. Talvez a resposta esteja mais na diferenciação do que na proibição.
Cinco futuros possíveis
Ok, mapeamos o problema. Mas pra onde isso vai? Vamos do cenário otimista ao catastrófico.
1. a bifurcação total
A indústria se divide em dois mercados completamente separados, como aconteceu com comida orgânica vs. industrializada.
De um lado, o mercado premium humano: música feita por humanos, verificada, certificada, cara. Shows ao vivo, experiências autênticas, storytelling real. Artistas como Taylor Swift, Beyoncé, Radiohead são nomes que já são grandes demais para serem substituídos. O ingresso do show custa uma fortuna porque você está pagando pela presença, pelo suor, pelo risco de algo dar errado.
Do outro, o mercado mass market de IA: música gerada por algoritmo, barata ou gratuita, infinitamente customizável. “Crie sua própria trilha sonora para qualquer momento.” Música de fundo para restaurantes, elevadores, academias, TikToks. É o Breaking Rust no seu fone enquanto você corre na esteira.
Resultado: A classe média musical colapsa completamente. Ou você é superstar ou não é nada. Não existe mais “músico profissional de nível intermediário”, ou a bandinha indie de 10.000 seguidores. É como a fotografia: ou você é Annie Leibovitz ou você é um filtro do Instagram.
2. a co-criação forçada
As grandes gravadoras como Universal, Warner e Sony já estão fazendo acordos com empresas de IA. Nesse cenário, isso se tora o novo padrão.
Artistas são “incentivados” a permitir que suas obras treinem modelos em troca de royalties micro-fracionários cada vez que a IA gera algo inspirado neles. Você assinou com a gravadora? Então seu catálogo vai alimentar o algoritmo.
Plataformas de streaming de música lançam AI Radio: estações que geram música infinita no estilo de seus artistas favoritos, sem nunca tocar a mesma música duas vezes. Produto tipo “Create your artist”, onde você descreve o artista perfeito e a IA gera um catálogo inteiro para você. “Quero uma mistura de Adele com Björk cantando sobre ansiedade climática em português.” Pronto.
Resultado: Música se torna um serviço, não uma arte. Compositores se tornam “licenciadores de estilo” em vez de criadores.
3. a regulamentação salva o dia
União Europeia aprova AI Act com proteções fortes para criadores. Austrália e Nova Zelândia lideram legislação que exige consentimento explícito para treinar IA em obra protegida; atribuição clara de uso de IA em música; royalties obrigatórios para artistas cujo trabalho treinou modelos; proibição de exportação de música gerada por IA sem compensação. EUA eventualmente segue o movimento, de forma meio atrapalhada e meio fora de timming mais pra não ficar chato.
Resultado: Mercado de IA se torna legal mas mais caro. Empresas de IA pagam licenças. Artistas recebem alguns trocados, tipo o que aconteceu com streaming, onde o Spotify paga frações de centavo por play. Todo mundo continua insatisfeito, mas é melhor que nada. A IA desacelera, não para.
4. a revolta cultural
Uma nova geração rejeita IA por completo. “Artesanato musical” se torna movimento cultural, como o slow food foi para a alimentação nos anos 90.
Selos “100% human made” viram marca de qualidade, como orgânico na comida ou selo de pequeno produtor no café. Festivais, rádios e venues começam a banir música de IA. Plataformas de streaming criam uma categoria separada para IA (e muitos usuários a bloqueiam nas configurações).
Artistas toram de fazer coisa sobre imperfeição, vulnerabilidade, e processo humano como parte do próprio produto. “Assista-me criar esta música em tempo real, sem edição, sem IA, sem truques.” É o Navio de Teseu como espetáculo: você paga para ver as tábuas sendo trocadas.
Resultado: Nicho rentável para música humana autêntica. 80% do mercado ainda é IA. Mas 20% sobrevive e até prospera sendo agressivamente humano. A Rosalía desse cenário grava no celular, erra notas de propósito, e cobra caro por isso.
5. o caos tora
Nada muda significativamente, IA continua melhorando e custos continuam caindo. Produção continua acelerando e as 50 mil faixas por dia viram 500 mil.
Em 2028, 70% de toda música nova é gerada por IA. Spotify tem 500 milhões de “artistas” (dos quais 400 milhões são IA). Billboard para de rastrear origem humana vs. IA porque “não importa mais.” A pesquisa da Deezer vira piada: “Lembra quando 97% não distinguiam? Agora é 99,9%.”
Músicos humanos existem, mas são minoria. A maioria trabalha em outras áreas e faz música como hobby. Alguns ganham dinheiro fazendo shows ao vivo, que é única coisa que a IA não consegue substituir (ainda). Pouquíssimos superstars continuam lucrativos.
A indústria musical como conhecemos, de A&R, produtores, engenheiros de som, músicos de sessão, a compositores de jingle praticamente desaparece. Tudo é substituído por “prompt engineers”, “AI trainers” e “synthetic music curators.”
Resultado: Música se torna tão abundante que perde todo o valor econômico.
O navio segue navegando
Se fosse pra chutar em algum desses futuros, eu diria que vai ser uma mistura deles. A bifurcação já começou, a co-criação forçada está em andamento. A regulamentação é a que eu menos boto fé. A revolta cultural tem seus nichos, e o caos já é o default.
Duas coisas finais:
Coisa 1: aqui está o framework do cenário musical atual (porque esse é o combinado de todo post). Basicamente, a música de elevador já foi de arrasta. Quem faz uma música em cima de fórmulas e sem presença também. O improviso e a orquestração ainda têm lastro, mas ser radicalmente humano é tudo que pode ser feito por quem quer se diferenciar.
Coisa 2: pra terminar no DEBOCHE, pedi pra IA criar uma musiquinha sobre esse post:
*Um agradecimento mais do que especial à minha amiga Ana Mohallem, que me apresentou o paradoxo de Teseu há bem uns 16 anos e desde então ele é assunto recorrente em discussões de bar, analogias cinematográficas, crises existenciais e tudo mais. Tenham amigos e bebam cerveja com seus amigos porque você nunca sabe quando vai usar um exemplo desses depois.



Ótimo texto com muitas possibilidades filosóficas (adorei os cruzamentos).
Uma das citações era tema recorrente com os amigos na faculdade:
Benjamin dizia que a aura de uma obra reside no seu “aqui e agora” e na sua irrepetibilidade
A questão
Então a música como obra de arte existe apenas no momento da sua criação? Após criada, gravada e executada ao vivo para uma platéia, perde sua aura de obra de arte?
Os intérpretes não são artistas por não serem criadores originais?
No curso da história, os mass media continuam vencendo. As músicas sintéticas, até agora, soam "sem alma". Deve ter sido um choque parecido quando a música eletrônica surgiu, por não ser executada por instrumentos musicais. Vai que o Thom York cria sua própria AI com um prompt que só ele saberia escrever e distorcer tudo num sintetizador + guitarra, depois remixa, e assim por diante.
Prefiro acreditar que a criatividade humana sempre aprenderá a dominar e subverter a tecnologia pra se expressar artisticamente (botar a AI pra mamar).
Pelo amor de deus ingrid